O domínio
humano da energia elétrica a partir do século XIX impulsionou o crescimento
econômico, dinamizou a vida doméstica, as comunicações, o lazer, o
conhecimento... Entre incontáveis efeitos desse avanço tecnológico na sociedade
moderna, há também relações jurídicas que continuamente demandam a intervenção
dos tribunais.
E são
muitos os conflitos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em busca
de solução na área de energia elétrica. Algumas ações discutem a
responsabilidade das concessionárias por acidentes ou falhas do serviço.
Outras tratam da cobrança de tarifas ou do corte no fornecimento.
O STJ,
por exemplo, decidiu que o consumidor é parte legítima para contestar cobrança
indevida de tributo indireto sobre energia elétrica. Em outra decisão, afirmou
que aquele que frauda o medidor de consumo pode ter o serviço suspenso. Em um
recurso, decidiu ainda que, sem aviso prévio, o corte de energia por falta de
pagamento é ilegal. Confira algumas das decisões importantes nessa área.
Responsabilidade
objetiva
Em
fevereiro deste ano, a Terceira Turma, por maioria, condenou uma concessionária
a pagar indenização por danos morais e materiais à viúva e ao filho de um
trabalhador que morreu eletrocutado em 1988 quando fazia a limpeza de uma
piscina, com base na responsabilidade objetiva da empresa (REsp 1.095.575).
Devido a
um aterro, feito durante a reforma do imóvel, o nível da área da piscina foi
elevado e a distância em relação à rede elétrica acabou ficando menor que a
recomendada pelas normas de segurança. Ao fazer seu trabalho, a vítima encostou
a haste do aparelho de limpeza nos fios de alta tensão e sofreu descarga
elétrica fatal.
A mulher
e o filho, menor à época do acidente, ajuizaram ação pedindo reparação dos
danos materiais e compensação por danos morais. A concessionária alegou falta
de culpa pelo ocorrido, bem como a culpa exclusiva da vítima ou dos donos do
imóvel.
A
Terceira Turma reconheceu a responsabilidade objetiva da concessionária, que
não fiscalizou a reforma realizada no imóvel. Ela não teria observado as regras
mínimas de segurança estabelecidas pela legislação.
“O risco
da atividade de fornecimento de energia elétrica é altíssimo, sendo necessária
a manutenção e fiscalização rotineira das instalações, exatamente para que
acidentes como aquele que vitimou o marido e pai dos recorrentes sejam
evitados”, disse a relatora da matéria, ministra Nancy Andrighi. Para ela, “de
nada adianta uma única verificação feita pela concessionária quando da
implantação da rede elétrica”.
A
ministra assinalou que o Código Civil de 1916, vigente na época do acidente,
não tratava expressamente da responsabilidade objetiva em decorrência do risco
da atividade, o que só veio a ser feito no código de 2002. Mesmo assim, segundo
ela, ainda antes da Constituição de 88 e da entrada em vigor da nova legislação
civil, a responsabilidade objetiva das concessionárias de eletricidade já era
reconhecida judicialmente, com base no risco da atividade.
Aposentadoria
especial
A
Primeira Seção decidiu, em recurso repetitivo, que a exposição habitual do
trabalhador à energia elétrica pode motivar a aposentadoria especial (REsp
1.306.356).
O
Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) argumentou em juízo que a exclusão
da eletricidade da lista de agentes nocivos, em decreto de 1997, tornaria
impossível mantê-la como justificadora do tempo especial para aposentadoria.
O
ministro Herman Benjamin, no entanto, sustentou que a interpretação sistemática
de leis e normas que regulam os agentes e atividades nocivos ao trabalhador
leva a concluir que tais listagens são exemplificativas. Assim, deve ser
considerado especial o tempo de atividade permanente e habitual que a técnica
médica e a legislação considerem prejudicial ao trabalhador.
O
ministro destacou que a jurisprudência já havia fixado esse entendimento na
Súmula 198 do Tribunal Federal de Recursos (TFR). Segundo a súmula,
"atendidos os demais requisitos, é devida a aposentadoria especial, se
perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa,
insalubre ou penosa, mesmo não inscrita em regulamento”.
Corte de
energia
Muitas
demandas chegam ao STJ discutindo o corte no fornecimento de energia elétrica.
Segundo decisão proferida em um recurso, se os usuários inadimplentes não forem
previamente avisados sobre o corte de energia, a suspensão do serviço será
ilegal.
A
Primeira Turma negou recurso apresentado por uma concessionária, que pretendia
mudar decisão de segunda instância que restabeleceu o fornecimento de energia
de um condomínio com 300 apartamentos, em Maceió, mesmo estando com pagamento
em atraso (REsp 1.306.356).
A empresa
alegou que o condomínio era devedor frequente, tendo sido, inclusive, condenado
em ação de cobrança de débitos. Segundo a empresa, o condomínio teria admitido
a condição de devedor ao ingressar com mandado de segurança contra o corte no
fornecimento de energia, daí a possibilidade de interrupção no serviço.
Em
primeiro grau, o condomínio garantiu o restabelecimento da energia, porque os
artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) impediriam a suspensão,
por se tratar de fornecimento considerado essencial e de prestação contínua. O
Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) negou o apelo da concessionária, sob o
argumento de que os consumidores teriam de ser avisados previamente sobre a
suspensão, o que não ocorreu.
No
recurso apreciado pelo STJ, o relator, ministro Teori Albino Zavascki, destacou
que a regra do CDC não é absoluta. Deve, sim, ser conjugada com a Lei 8.987/95
– a Lei de Concessões, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos. Em seu artigo 6º, a lei possibilita a
interrupção após aviso prévio, nos casos de inadimplemento. No entanto, de
acordo com o ministro Zavascki, ante a falta do aviso, como no caso julgado, o
corte é ilegítimo.
Cobrança de
dívida
No que se
refere à fraude no medidor, o STJ entende que é possível o corte no
fornecimento de energia, mesmo que tenha realizado um acordo, que mais tarde
foi descumprido (REsp 806.985).
Em um dos
recursos julgados, a concessionária realizou fiscalização na residência da
usuária e ingressou na Justiça para cobrar diferenças entre o consumo médio,
considerando os aparelhos eletrodomésticos existentes na casa, e os valores
efetivamente pagos. A especificidade do processo é que foi feito um acordo com
a consumidora, que pagou apenas duas parcelas do ajuste.
O
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que a dívida decorria
do inadimplemento de acordo acertado para solucionar diferenças a título de
recuperação de consumo de “crédito passado”, que nada teria a ver com a relação
ordinária da prestação do serviço. Segundo o órgão, o crédito antigo deveria
ser recuperado pela via do processo judicial, segundo as regras gerais
previamente estabelecidas, não sendo possível o corte de energia do usuário, como
se fosse um devedor contumaz.
O
ministro João Otávio de Noronha, entretanto, entendeu que não se tratava de
mero inadimplemento de contas antigas, como em caso em que é esquecida a
cobrança por parte da concessionária. Se esse fosse o caso, no seu ponto de
vista, não seria razoável a interrupção do serviço, até porque seria de se
supor que a concessionária já haveria absorvido o prejuízo.
O caso
dos autos, segundo o ministro, tratava-se de uma fraude, em que a companhia
buscou cobrar os valores cabíveis tão logo soube de sua existência. “Assim,
visto que não se trata de débitos passados, mas de valores que estavam sendo
negociados, entendo que é lícito a concessionária interromper o fornecimento
se, após o aviso prévio, o consumidor devedor não solver a dívida oriunda de
contas geradas pelo consumo de energia”, disse o ministro.
Noronha
destacou que não modifica a conclusão o fato de que não se tratava de simples
inadimplência relativa a contas antigas, mas de débitos apurados
unilateralmente pela concessionária. “Ora, evidentemente que o consumidor que
frauda medidor tem intenção de que o real consumo de energia por ele realizado
seja camuflado, com o fim de pagar menos”. Em tais casos, não há dúvida quanto
à existência de energia consumida que não foi quitada.
Seria um
contrassenso, segundo o ministro, o entendimento de que é permitida a suspensão
de energia por consumo ordinário não pago, e de que não é permitida na hipótese
de consumo não pago porque a apuração não foi exata em decorrência da camuflagem
praticada pelo consumidor.
Apuração
unilateral
O STJ tem
o entendimento de que, nos casos de irregularidade no medidor, a concessionária
deve utilizar os meios ordinários de cobrança para o recebimento da diferença,
não a interrupção do fornecimento. Com base nessa jurisprudência, a Segunda
Turma rejeitou recurso especial ajuizado por concessionária para reverter
decisão do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro (REsp 633.722).
A
concessionária apresentou prova pericial que constatou irregularidades
anteriores na medição do fornecimento. Mas não conseguiu comprovar a existência
de fraude no equipamento, que, segundo a concessionária, gerou uma diferença de
33% entre o que foi efetivamente utilizado pelo consumidor e o que ficou
registrado no medidor irregular, nos 24 meses anteriores.
Como o
consumidor vinha pagando as faturas mensais regularmente, a Justiça fluminense
entendeu que o corte seria uma forma de coação para forçar o pagamento de tal
diferença, procedimento inadimissível no sistema jurídico.
No
recurso ajuizado no STJ, a concessionária sustentou que a falta de pagamento de
valores relativos a diferenças apuradas ante a constatação de irregularidades
no medidor permite o corte no fornecimento da energia. Acompanhando o voto do
relator, ministro Herman Benjamin, a Turma considerou que a concessionária
queria utilizar o corte de energia para forçar o consumidor a reconhecer as
conclusões técnicas a que ela chegou unilateralmente.
Em seu
voto, o relator ressaltou que o caso não envolvia discussão sobre energia
ordinariamente fornecida, mesmo porque o consumidor recorrido estava em
situação de adimplência, exceto em relação ao período em que a concessionária
questionava a medição. Dessa forma, em razão de os débitos serem antigos e
contestados pela consumidora, não se aplica a Lei de Concessões.
Por não
se tratar de devedor contumaz, a Turma decidiu que a concessionária de serviço
público deveria utilizar os meios ordinários de cobrança, não a interrupção do
fornecimento para buscar a quitação do débito.
Contestação
judicial
Um
consumidor de São Paulo garantiu o direito ao fornecimento de energia elétrica
enquanto contestava judicialmente um débito, considerado por ele indevido (Ag
697.680). A concessionária apurou unilateralmente uma suposta fraude e, com
base em um termo de irregularidade, passou a cobrar do consumidor a diferença
entre o que alegava ser o consumo real e o valor pago durante cinco anos,
inclusive cortando o serviço.
A Segunda
Turma não chegou a analisar o recurso apresentado, que pretendia reformar
decisão favorável ao consumidor no Tribunal de Justiça de São Paulo. Mas o
relator, ministro Castro Meira, explicou que a interrupção do fornecimento de
energia daquele que procura a Justiça para discutir os débitos que considera
indevidos é uma forma de constrangimento ilegal.
O
ministro destacou haver no STJ entendimento de que é lícito à concessionária
interromper o fornecimento se, após aviso prévio, o consumidor permanecer
inadimplente no pagamento da conta. No entanto, tornado o débito litigioso, o
devedor não poderá sofrer nenhuma retaliação por parte do credor.
Furto de
energia
O STJ
decidiu em 2010 que a concessionária pode suspender o fornecimento de energia
elétrica em caso de fraude devidamente apurada em processo administrativo. O
então presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, deferiu parcialmente o
pedido apresentado pela companhia e suspendeu liminar de juízo de primeiro grau
que impedia o corte no fornecimento antes da realização da perícia técnica por
órgão imparcial, seguindo procedimento previsto na Resolução 456/00 da Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A
concessionária alegou, no pedido, que, ao prevalecer a liminar da Justiça
paulista, haveria completa inversão de valores. Seria mais vantajoso ser
fraudador do que apenas inadimplente. O cidadão que fraudasse o medidor de
consumo de energia não poderia ter corte no fornecimento por não pagamento da
conta de luz. Já aquele que fossse apenas inadimplente teria suspenso o serviço
de eletricidade e a religação ficaria condicionada ao pagamento.
Segundo o
ministro Cesar Rocha, a impossibilidade de corte no fornecimento para os
consumidores inadimplentes e, principalmente, nas hipóteses em que houver
fraude, pode ocasionar grave lesão à economia pública. O ministro defendeu que
a decisão fosse intermediária a fim de evitar grave lesão à ordem e à economia
pública, sem prejudicar o direito de defesa do consumidor acusado de fraude.
Cesar
Rocha decidiu pela suspensão de parte da liminar para permitir o corte no
fornecimento de energia elétrica na hipótese de não pagamento dos valores
resultantes de fraude, apurados em processo administrativo, com direito à ampla
defesa do consumidor e dispensada perícia quando não requerida por ele (SLS
1.244).
Dívida
pregressa
Segundo o
STJ, nos casos em que fica configurada a cobrança de valores não contemporâneos
à prévia notificação, não deve haver a suspensão do fornecimento. Foi o que
ficou decidido em recurso julgado pela Segunda Turma em processo do Rio Grande
do Sul (REsp 865.841).
No caso,
a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) cortou o fornecimento de uma
usuária após constatar irregularidades no medidor. O mau funcionamento foi
resolvido e a companhia fez uma cobrança com base no maior consumo da usuária
em 12 meses.
Conforme
posição do Tribunal nesse recurso, o corte de energia pressupõe inadimplemento
de conta relativa ao mês do consumo, sendo inviável a suspensão do
abastecimento em razão de débitos antigos. Para tais casos, deve a companhia
usar dos meios ordinários de cobrança, pois não se admite qualquer espécie de
constrangimento ou ameaça ao consumidor.
A
concessionária alegou que o corte era possível em função do artigo 6º,
parágrafo 3º, da Lei de Concessões. Esse artigo obriga que as empresas forneçam
serviço contínuo e adequado aos usuários, podendo interrompê-lo em caso de
emergência ou inadimplemento, após aviso prévio.
O
ministro Humberto Martins, relator da matéria no STJ, considerou que, apesar de
a Primeira Turma ter considerado lícito a empresa interromper o fornecimento
mediante aviso prévio em caso de inadimplemento, isso não se aplica a casos em
que há cobrança de débitos pretéritos.
O
ministro observou que o CDC se aplica aos serviços públicos prestados por
concessionárias e que o artigo 42 prevê que só podem ser usados meios
ordinários de cobrança, não se admitindo constrangimento ou ameaça aos
usuários.
Ele citou
a jurisprudência do Tribunal segundo a qual só se admite a suspensão do
fornecimento no caso de débitos relativos ao mês de consumo e em contas
regulares. Como haveria diferença da tarifa habitual devido ao “ressarcimento”
dos meses quando o medidor não funcionava adequadamente, o fornecimento não
poderia ter sido suspenso.
Tributo
sobre energia
O STJ
garantiu o direito de o consumidor reclamar judicialmente dos aumentos no preço
de energia elétrica, em decorrência de práticas tributárias adotadas pelo
governo.
Segundo
decisão da Primeira Seção, no julgamento de um recurso do Rio Grande do Sul,
qualquer excesso fiscal imposto à concessionária é repassado automaticamente ao
consumidor final em caso de serviço essencial explorado em regime de monopólio.
Por isso, ele é o único interessado em contestar a cobrança indevida de tributo
(REsp 1.278.688).
A
Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a legitimidade
de uma empresa, consumidora final de energia elétrica, para impugnar a cobrança
de imposto sobre a demanda contratada em vez da efetivamente fornecida. No caso
julgado em regime de repetitivo, tratava-se de distribuidora de bebida que
pretendia restituição de imposto recolhido pela fabricante.
A Seção
entendeu que a concessionária de energia posiciona-se ao lado do estado, no
mesmo polo da relação, já que o repasse vai para o consumidor final. A posição
da concessionária é “absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando
qualquer litígio”, já que a lei impõe a majoração da tarifa nessas hipóteses,
para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão – afirmou o ministro
Cesar Asfor Rocha, em voto-vista apresentado na Seção.
“O
consumidor da energia elétrica, observada a relação paradisíaca
concedente/concessionária, fica relegado e totalmente prejudicado e
desprotegido”, afirmou o ministro.
De acordo
com o relator desse recurso, ministro Herman Benjamin, a concessionária atua
mais como substituto tributário no caso, sem interesse em resistir à exigência
ilegítima do fisco, do que como consumidor de direito. “Inadmitir a
legitimidade ativa processual em favor do único interessado em impugnar a
cobrança ilegítima de um tributo é o mesmo que denegar acesso ao Judiciário em
face de violação ao direito”, concluiu.
Energia não
consumida
A
Primeira Seção do STJ decidiu, também em repetitivo, que o consumidor possui
legitimidade para contestar a cobrança de Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) no caso de energia elétrica que, apesar de
contratada, não foi efetivamente fornecida.
Os
ministros rejeitaram o argumento do fisco de que o destinatário final da
energia não integra a relação tributária, já que não arca diretamente com os
custos do imposto. Para o ministro Cesar Rocha, esse entendimento é perverso
quando aplicado aos serviços de concessionárias públicas.
“Sem
dúvida alguma, sobretudo no tocante à cobrança, ao cálculo e à majoração dos
tributos – à exceção do Imposto de Renda –, o poder concedente e a concessionária
encontram-se, na verdade, lado a lado, ausente qualquer possibilidade de
conflito de interesses”, sustentou.
O
ministro explicou que, nas hipóteses de mudança nos tributos, a lei protege a
concessionária, obrigando a revisão dos valores de tarifas a fim de preservar o
equilíbrio econômico-financeiro do contrato. “Sob esse enfoque é que o
estado-concedente e a concessionária do serviço público encontram-se lado a
lado, no mesmo polo, em situação absolutamente cômoda e sem desavenças, inviabilizando
qualquer litígio em casos como o presente”, anotou.
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